domingo, 27 de outubro de 2024

30 anos depois, viagem a um tempo de antena do cavaquismo

Os cavalos a correr...

Vitor Dias
Avante de 30.4.94

Beneficiando obviamente de facilidades concedidas pelo PSD no âmbito do que se costuma chamar a «propaganda da propaganda», logo na manhã de segunda-feira o «JN» podia anunciar que  «o puro sangue lusitano, generoso e temperamental»  seria  «o elemento audiovisual dominante em todo o tempo de antena do PSD »  que a RTP transmitiria na noite desse dia, numa escolha destinada a exprimir a  «impetuosidade triunfante»  da mensagem televisiva do PSD.

De facto, assim foi. Com o «Bolero» de Ravel sempre em fundo, lá tivémos os cavalos a correr ao serviço da esfalfante missão de fazer os portugueses aprender quanto do prestigio mundial de Portugal, do progresso e modernização do país e da vida boa e feliz do seu povo se deve ao PSD e a Cavaco Silva.

Sejamos compreensivos com o PSD: quem não tem cão, caça com gato.Não há agora uma selecção nacional de juniores campeã mundial cujas imagens possam ser instrumentalizadas pela propaganda do PSD.E o « novo homem português », que Cavaco Silva em tempos anunciou pretender criar, ainda não começou a sair da linha de montagem e, por isso, também não pode ser exibido em tempos de antena de televisão. 

Sem os juniores campeões e sem exemplares decentes e credíveis do «novo»  português, compreende-se, a muitos títulos, que o recurso aos cavalos lusitanos - impetuosos mas domados, fortes mas irracionais, correndo em manada na direcção imposta pelo susto causado pelo helicóptero por conta das filmagens do PSD - tenha agradado aos responsaveis do PSD.

O resto do tempo de antena não tinha nem história nem novidade. Porque, tirando os miserabilistas e catastrofistas do costume, todos sabemos que nós, portuguesinhos valentes comandados pelo Prof. Cavaco,  « estamos a vencer a crise internacional que nos bateu à porta »  e « aproximamo-nos a passos largos dos países mais desenvolvidos da Europa » , que Portugal é o máximo para estrangeiros. Porque, tirando os pessimistas e derrotistas do costume, todos sabemos  que «  Portugal deu a volta e está a vencer » e que , tal como aquele inesquecível casal « descoberto» pelo PSD, tivémos mais dinheiro este ano e até já não precisámos dessas misturas de apartamentos de férias alugados a meias.

Mas então - perguntará algum leitor mais desejoso de equilibrio e imparcialidade - não se salvou nada no tempo de antena do PSD ?

Claro que sim. Nem mais nem menos que os cavalos lusitanos - bonitos e simpáticos animais - e o «Bolero» de Ravel.

Naquela peça de mistificação e ilusionismo, eram os únicos inocentes. Ninguém lhes pediu opinião e, por sinal, até já existiam antes de Cavaco Silva ter empreendido esse pesadelo que cinicamente baptizou de  «democracia de sucesso».

sábado, 12 de outubro de 2024

Uma polémica antiga com Vasco Pulido Valente


Vítor Dias no »PÚBLICO» 4.8-2006

A par de outros textos ou tomadas de posição, foi a arrogante catiliASnária que, no domingo passado, Vasco Pulido Valente debitou nas páginas deste jornal contra um texto de uma jornalista do “PÚBLICO” (São José Almeida) em torno das questões da memória sobre o fascismo português, que mais me acordou para a evidência de que, em relação a um vasto conjunto de acontecimentos e problemas da história contemporânea, está em curso um atrevido processo de revisão e rasura, muitas vezes convenientemente mascarado com poses de “distanciamento”, “pacificação”, “bom senso”, “relativismo político”, “neutralidade” e “isenção”.

Este processo é especialmente notório em matérias tão diversas como as reclamações em Espanha de recuperação da memória histórica da Guerra Civil e das vítimas da ditadura franquista, como a natureza e qualificação da ditadura imposta aos portugueses durante 48 anos, ou como o conflito no Médio-Oriente (onde até voltam truques conhecidos de há mais de 40 anos, como o de chamar anti-semita a quem for anti-sionista ou crítico da política do Estado de Israel).

Deixando de lado colunistas de outros jornais, basta lembrar que, por exemplo, aqui neste jornal, já tivemos recentemente, quanto a Espanha e às iniciativas que lá estão em discussão, o prof. Mário Pinto a sentenciar que “o exemplo espanhol é impressionante de agressividade, repetindo, “mutatis mutandis”, os excessos dos “rojos” que provocaram a guerra civil que trouxe o franquismo”, mas passando, de forma contorcionista, ao lado do anterior “excesso” que foi a ditadura do General Primo de Rivera entre 1923 e 1930; e, quanto ao mesmo tema, já tivemos também Vasco Pulido Valente a recomendar que tudo se esqueça, fique como está e se ponha uma pedra (ou talvez mesmo uma pedreira) sobre o assunto.

Quanto à agressão de Israel contra o Líbano e à questão palestiniana nem vale a pena dar exemplos de tantas falsas “equidistâncias”, de tantas amnésias sobre a origem histórica do problema, da incompreensão de fundo sobre como quase 60 anos de humilhações, expulsões territoriais, exílios e desespero de todo um povo sofredor e a falta de respeito por Israel de todos os acordos acabaram por dar uma considerável base de apoio popular a forças radicais e extremistas.

E, por fim, no que toca ao “Estado Novo”, é sobretudo de reter a afirmação de Vasco Pulido Valente de que “é preciso uma ignorância absoluta do que foi o nazismo e o fascismo italiano (duas coisas, de resto, muitíssimo diferentes) para os confundir com uma ditadura conservadora e católica como a de Salazar”, assim rejeitando expressamente que se qualifique de “fascista” o regime de Salazar e Caetano. E, como se tanta prosápia professoral não chegasse, VPV ainda acrescenta que o “fascismo” foi “uma invenção do estalinismo” e que “é preciso uma especial cegueira para não ver a abissal diferença entre Salazar e o curto consulado de Marcelo Caetano”.

Quanto a este ponto fulcral já lá irei, mas antes quero exprimir a preocupação de que, se não se fizer frente desde já, com coragem e convicção, a esta “onda” de real branqueamento de coisas sinistras e de quase absolvição de pesadas responsabilidades, então não se estranhe que, daqui por uma década ou duas (ou mesmo antes), se multipliquem as vozes que publicamente afirmam que o nazismo não têm particulares responsabilidades no desencadeamento da 2ª Guerra Mundial porque, desde o primeiro dia, o seu mais obsessivo objectivo era ocupar uma União Soviética manifestamente “inimiga da civilização ocidental”.

Ou então, como outro exemplo a que devemos ser nacionalmente ainda mais sensíveis, que alguns comecem a dizer que, quanto ao derrubamento da ditadura fascista em Portugal e à Revolução de Abril, é muito difícil saber, passado tanto tempo, se eram os derrotados ou os vencedores que tinham a razão do seu lado ou a proclamar que, em retrospectiva, entre fascistas e democratas tudo se equivalia e todos merecem o mesmo respeito histórico.

Mas, voltando ao mais importante, é agora tempo de dizer que os muitos que em Portugal considerámos no passado e continuamos a considerar hoje que a ditadura de Salazar e Caetano foi uma ditadura fascista não o fazem apenas por uma questão de tradição, de teimosia ou de puro alinhamento com o vasto e maioritário acolhimento e suporte populares que essa qualificação ganhou.

É que se Vasco Pulido Valente é, de facto, historiador e não um autor de literatura de cordel como fez supor com o seu famoso “ensaio” de 2004 sobre a - na sua opinião, inexistente - Revolução de Abril, então é preciso que esteja afundado na “ignorância absoluta” de que há, em Portugal e sobretudo em todo o mundo, centenas de ensaios e milhares de artigos, com inegável consistência intelectual, de historiadores nacionais e estrangeiros, com inquestionável prestígio científico, que sem negarem diferenças, nuances e especificidades nacionais, se pronunciam pelo alargamento da qualificação de fascistas a outros regimes  (Espanha, Portugal, etc.) para além da Itália.

De facto, só uma imperdoável “ignorância absoluta” é que pode levar Pulido Valente a ignorar que, nesta matéria, há no essencial e falando em termos simplificados, duas grandes correntes historiográficas: a daqueles que determinam um “fascismo-tipo” (por exemplo, a Itália de Mussolini) e depois excluem dessa classificação todos os outros regimes onde não se reproduziram todas as características anteriormente detectadas no modelo escolhido e onde até se desenharam variações e diferenças específicas (às vezes de carácter acessório); e a daqueles que, privilegiando as identidades entre esses regimes em termos de eixos fundamentais, de interesses de classe veiculados e de concepções ideológicas de fundo, defendem a legitimidade de a todos aplicar a mesma classificação de “regimes fascistas”.  

A este propósito, o reputado historiador italiano Enzo Colloti (outro ignorante?), no final da sua obra Fascismo, Fascismos (Ed. Caminho), escreve que “foi justamente das grandes linhas, comuns a todos os movimentos e regimes de que falámos, que extraímos a confirmação da existência de um húmus cultural e de uma contingência histórica que permitiram a realização de experiências que não foram isoladas nem fragmentárias e que podem ser referidas a uma ideia-força, quaisquer que depois tenham sido as suas diversas traduções nos respectivos contextos políticos e sociais específicos”. 



PÚBLICO  de 11 de Agosto de 2006
O sapato de cristal

A crónica de Vasco Pulido Valente, intitulada “A história e Vítor Dias” e publicada neste jornal no passado sábado em comentário ao meu artigo de há uma semana, merece necessariamente algumas observações.

Desde logo, a primeira observação é a de que dois terços do texto de VPV são dedicados a descrever os regimes da Alemanha, da Itália, da Espanha e de Portugal em termos propositadamente orientados para apenas assinalar as diferenças ou singularidades que os marcaram, sendo que algumas delas são óbvias e até merecem a minha concordância e outras nem tanto.

Neste sentido, creio ser legítimo afirmar que VPV gastou boa parte do seu precioso espaço a arrombar as portas que eu já tinha escancarado no meu artigo, uma vez que nele, em momento algum, jamais afirmei qualquer identidade ou similitude totais entre os diversos regimes que qualifiquei de fascistas e não só não neguei como explicitamente confirmei a existência entre eles de diferenças, nuances e especificidades nacionais que, aliás, sempre se verificam em relação a todos os conceitos históricos deste tipo.

Ainda assim, creio que as descrições feitas por VPV têm em alguns pontos um carácter sobretudo impressionista, relevam de uma visão atomística do processo histórico, insistem sobre pontos acessórios ou variações de grau e, uma vez ou outra, estabelecem diferenças que são de elementar explicação.

Assim, por exemplo, deixar à vista que, por comparação com a Alemanha e a Itália, o Portugal dirigido por Salazar não tinha pretensões de formar ou conquistar um império é completamente irrelevante, na medida em que já o tinha (o império colonial) e, como Salazar bem explicitou, do que se tratava era de o manter e defender. De igual modo, também me parece um pouco esquemático declarar apenas que em Portugal, ao contrário de outras ditaduras europeias, não houve “nenhuma tentativa séria de arregimentar e militarizar a sociedade, belicismo ou racismo”. É que talvez seja bom não esquecer que houve tentativas e medidas de enquadramento (Mocidade Portuguesa, Legião Portuguesa, rituais de arregimentação “popular” como as manifestações no Terreiro do Paço), que houve o “belicismo” próprio de quem enfrenta 13 anos de guerra colonial e que, se não houve racismo em relação aos judeus, existe pelo menos um discurso de Salazar onde refere a responsabilidade civilizadora de Portugal em relação às “raças inferiores” dos territórios “ultramarinos”.

E, neste campo, tenho ainda de assinalar que a referência à ditadura salazarista como “antimoderna” me faz suspeitar que VPV integre aquele grupo de historiadores que, por vezes, confunde o discurso ruralista, provinciano e desconfiado do progresso técnico e da industrialização tantas vezes enunciado por Salazar com as reais orientações e medidas efectivamente aplicadas pelo regime, designadamente a partir de 1945 e que conduziram à utilização coerciva dos meios do Estado para acelerar a concentração capitalista nos seis grupos económicos que, nos anos 60, já dominavam o essencial da economia portuguesa. 

A segunda observação é no sentido de salientar que o texto de Vasco Pulido Valente (acantonando-se nas diferenças e sobrevalorizando-as e ignorando semelhanças substanciais e convergências estruturais) se insere precisamente numa das correntes historiográficas que eu havia caracterizado como aquela que, prisioneira do “fascismo-padrão” de Mussolini, nega o carácter fascista de regimes como o de Portugal e de Espanha.

Esta corrente baseia-se num método de origem anglo-saxónica para o qual, segundo as expressivas e saborosas palavras do historiador Luís Bensaja del Schiró (Vértice, II série, nº 13, Abril de 1989) “foi cunhado um palavrão – “taxonomia”- que pretende reunir um conjunto de postulados teóricos mínimos, sem os quais não se poderá falar em fascismo: uma espécie de sapato de cristal da gata borralheira destinado a excluir todos aqueles regimes que, tendo embora a forma adequada para a experiência, acabam por ser recusados por não se adaptarem rigorosamente ao modelo pré-fabricado”.

A terceira observação destina-se a pôr em evidência que VPV foge, como o diabo da cruz, dos aspectos, características, fundamentos ideológicos ou objectivos políticos que foram, em larga medida, comuns ao conjunto de regimes de que temos vindo a falar e sem os quais seriam aliás dificilmente explicáveis as suas alianças, cumplicidades e solidariedades.

Para que não se diga que estava na cara que só podia ir buscar a opinião de um historiador comunista, prefiro citar o falecido historiador César de Oliveira, membro do PS, que, em 1991, identificava “como factores que estão presentes, embora em gradações diferentes”, nas experiências históricas em causa, “a adopção do corporativismo como via alternativa ao capitalismo liberal e ao socialismo através da imposição da colaboração de classe pelo poder; a implantação de regimes com ou de partido único; o poder pessoal baseado num líder carismático; a hegemonia quase absoluta dos órgãos executivos; a autoridade como critério de acção governativa; a repressão política aos adversários e o recurso a formas diversas de censura à imprensa e às manifestações públicas; o nacionalismo”.

A estes factores, há quem acrescente muitos outros, como o combate ao movimento operário, ao socialismo e ao comunismo, com especial destaque ainda para um outro em que o texto de Vasco Pulido Valente é esclarecedoramente omisso e que, na linguagem dos comunistas e de outros sectores de esquerda, surge referenciado como fundamental e é definido como “a natureza de classe” destes regimes, acompanhado do entendimento de que estamos perante ditaduras terroristas ao serviço do grande capital em determinada conjuntura histórica.

E creio sinceramente que, se não se tem em conta este elemento crucial, então a explicação para a formação e duração daqueles regimes fascistas fica remetida para o “ar do tempo”, para o simples contágio ideológico ou para o azar da tomada do poder por uma clique de meros beatos, velhacos e assassinos da liberdade.

A quarta observação é para lembrar que, no seu texto, perguntou ainda VPV se existe em Portugal “alguém ou alguma coisa a que o PCP jamais chamou fascista”. Se, como é suposto, VPV está a falar do PCP como instituição e como partido e dos seus dirigentes e responsáveis, então a resposta é fácil: a insinuação é falsa e torpe porque há centenas e centenas de coisas e de pessoas a quem o PCP nunca chamou “fascista”.

A terminar, registo que VPV, depois de ter falado da “abissal diferença” entre Salazar e o consulado de Marcelo Caetano, acrescentou agora que este último já pertence a “outro universo”.

Quanto a isto, apenas digo que talvez fosse Vasco Pulido Valente que, à época, porventura vivesse noutro universo mental ou geográfico, porque no universo português em que eu e os outros portugueses vivemos, tirando as promessas, as mudanças de nomes das instituições fascistas e os parcos gestos de descompressão política em 1968/69, só vimos e sofremos a continuação de quase tudo o que de pior marcou a governação salazarista.

E dito isto, se o clima político de Agosto o permitir, ainda aqui virei questionar “a abissal diferença” entre Salazar e o consulado marcelista que, pelos vistos, enche a memória de Vasco Pulido Valente mas que eu e muitos outros, na época cegos até mais não, devemos ter estupidamente ignorado e desperdiçado.


segunda-feira, 7 de outubro de 2024

O PCP e a independência das colónias

Vítor Dias e J. Costa Feijão

Contam-me que, num recente debate de âmbito universitário sobre os 100 anos do PCP, um historiador voltou a menorizar o papel do PCP na luta contra a guerra colonial preferindo atribuir uma maior coerência nessa luta a sectores católicos e de extrema-esquerda.

Sobre o assunto, entendo sublinhar o seguinte :

1. Bastaria consultar a imprensa clandestina do PCP, os seus numerosos comunicados e materiais de agitação, as emissões da Rádio Portugal Livre (que teve um enviado à guerrilha do PAIGC na Guiné-Bissau) ou ter em conta as acções da ARA contra o aparelho de guerra colonial para se concluir da completa falta de fundamento da referida menorização.

2. É certo que é conhecido a tese – com a mesma origem – de que as posições do PCP sobre a guerra colonial teriam sido condicionadas pela sua política de unidade antifascista na medida em que outros sectores democráticos tinham posições colonialistas ou neocolonialistas. Mas uma coisa é o PCP, em resultado da correlação de forças existente no campo democrático, ter participado em movimentos unitários que não se pronunciavam pela independência das colónias e outra muito diferente, que nunca aconteceu, é ter na sua acção autónoma sacrificado as suas orientações anticolonialistas. Aliás, quando o PCP ganha a hegemonia no campo oposicionista, logo a oposição democrática passa a opor-se frontalmente à guerra colonial, como se viu nas campanhas das CDE’s em 1969 e 1973.

3. Para se perceber bem que a posição do PCP sobre a questão colonial não nasce em 1961 (ínicio da guerra colonial) nem sequer 1957 (aquando do V Congresso), antes acompanha toda a sua história pode ser útil revisitar o seguinte artigo de João Manuel Costa Feijão no «Avante!» em 2002.

O PCP e a questão colonial

por J. M. Costa Feijão

 « (…) essa ( guerra ) não é a de todos.
Cá uns irão por desejo de honra,
outros com esperança de ganho
e os mais, que são peões e gente meúda
(…) irão arrenegando, forçados de vosso medo,
sem a limpeza e liberdade das vontades»

(palavras do Infante D. João ao rei D. Duarte
quanto à projectada passagem à África, na
década de 30 do sec. XV)

Desde a sua fundação, o Partido Comunista Português assumiu uma atitude clara no debate nacional da «questão colonial» , reivindicando um posicionamento de solidariedade fraterna e militante para com as massas trabalhadoras colonizadas. E, nas suas bases orgânicas aprovadas em 1921 consta, entre outras alíneas:

e) preparação e promoção da emancipação completa dos povos indígenas das colónias.

(Base 2.ª, Capítulo I – Partido Comunista Português – Seus fundamentos e fins)

Fazendo desta linha um autêntico pau-de-fileira em matéria de política colonial, a primeira Junta Nacional do PCP reuniu em 6 de Abril de 1921, e analisando a situação em São Tomé e Príncipe, lavrou «um veemente protesto contra a repressão de que estavam a ser vítimas os trabalhadores da colónia» .

Este apontamento não regista um acto isolado, mas testemunha o início duma praxis internacionalista de 80 anos. É, a memorização de um facto, o primeiro, que liga de forma indelével, os comunistas portugueses às vitimas da exploração colonialista.

Passado um ano, em 31 de Maio 1922, o PCP difundiu na comunicação, social a seguinte nota oficiosa: «O Comité Executivo do PCP tomou conhecimento, na sua reunião de ontem, de que um movimento de emancipação indígena alastra na província de Angola, em virtude da opressão e exploração violentas ali exercidas pela ditadura imperialista de Norton de Matos tendo-lhe constado que, sob reserva, o governo português se dispõe à repressão, preparando uma expedição militar àquela colónia.
Nestes termos, o Partido Comunista, afirmando os altos princípios de igualdade emancipação das raças e a sua consequente oposição à escravatura negra, ainda hoje praticada pela civilização burguesa, lança o seu mais veemente protesto contra os negregados projectos ministeriais — e atendendo à gravidade do assunto, resolve reunir amanhã, em sessão extraordinária, à qual vão ser convidados a assistir representantes do Partido Nacional Africano ».

E, dando continuidade à defesa dos seus princípios, em Novembro de 1923, no Programa de Acção apresentado ao I Congresso afirmava-se: «O PCP dará todo o apoio às ligas, associações, partidos, etc., que tenham por fim a defesa da população das colónias portuguesas contra todas as extorsões capitalistas e estatistas. Defenderá as reivindicações de ordem política ou económica das colónias, combatendo as formas ainda existentes de escravidão mascarada.»

A denúncia do trabalho escravo em África, estava na ordem do dia. E, enquanto na Sociedade das Nações servia de pretexto a renovadas manobras de partilha do continente africano pelo imperialismo, e a burguesia nacional apelava à «mobilização patriótica» , em defesa dos seus interesses de classe e do património ameaçado, o diário sindicalista “A Batalha” de 27 de Novembro de 1925, publicava : «(…) pegar em armas para defender umas colónias que nunca nos pertenceram não é, nem pode, nem deve ser connosco».

Volvidos cinco séculos, a advertência do infante D. João, quanto à «gente meúda», arregimentada para o assalto à África, emergia, em letra de forma, na imprensa operária portuguesa.
* * *

Na primeira fase de ascenso e afirmação do regime fascista português, Salazar fez aprovar legislação, onde se admitia expressamente o «trabalho obrigatório» dos negros, integrado no seu projecto político alicerçado na Carta Orgânica do Império Colonial Português, e logo contestada pela Federação das Juventudes Comunistas, em Novembro de 1933: «A juventude explorada dos campos e das oficinas opõe ao ideal colonial o ideal anticolonial, oferecendo aos seus irmãos, que a burguesia imperialista explora e esmaga, a sua fraternal aliança como meio da sua libertação da metrópole e da burguesia local (…). Por ideal colonial, portanto, a juventude das fábricas só pode aceitar o que preconiza, e (…) faz parte do seu programa: Total autodeterminação dos povos coloniais e a sua inteira libertação do jugo da metrópole».

Tendo mergulhado na mais dura clandestinidade desde 1927, o PCP continuava a perseverar, contra tudo e contra todos, na luta pela fraternidade entre os povos, baseado no respeito pelas liberdades de cada um. E, a reafirmação dessa atitude seria mais uma vez proclamada na intervenção de Bento Gonçalves no VII Congresso da Internacional Comunista, em 1935, quando no elenco de tarefas dos comunistas portugueses inscreveu a: «luta pela defesa dos interesses dos povos coloniais oprimidos pelo imperialismo português, de ajudá-los a travar a luta até à sua completa libertação».
* * *

No informe político ao III Congresso do PCP, reunido em Novembro de 1943, a aliança com os povos coloniais voltaria a constituir tema de reflexão e debate dos delegados, tendo-se aí colocado, de forma inequívoca, a convergência de interesses das massas trabalhadoras portuguesas e das colónias na derrota do regime fascista : «A frente de luta anti-imperialista do povo português e dos povos das colónias, é somente possível se o proletariado português apoiar efectivamente os movimentos nacionais e de resistência contra a exploração e violência das colónias portuguesas, contra a burguesia imperialista portuguesa. O movimento emancipador dos povos coloniais está ligado à aliança fraternal do povo oprimido de Portugal com os povos escravizados das colónias, a aliança fraternal do proletariado português com as massas camponesas indígenas».

Prosseguindo o combate à mitologia gerada e nutrida com a sistemática ocultação da realidade colonial portuguesa pela classe dominante, o PCP denunciou a «missão civilizadora» do regime fascista e inventariou a perversidade dos processos repressivos e de exploração, no informe político presente ao IV Congresso, em Junho de 1946: «não é mantendo os povos coloniais em regime de escravatura benéfica a negreiros, não é mantendo as levas de escravos de colónia para colónia, condenando-os à morte pela natureza do trabalho, do clima e dos tratos que lhes são impostos, não é saqueando os pequenos agricultores indígenas, não é dando largas aos castigos corporais e desrespeito pela vida dos negros, não é hostilizando costumes e religiões, não é fomentando ideias de ódio racial – não é com uma tal política que se promove o desenvolvimento das colónias».

O início da derrocada dos impérios coloniais pós 1945, veio corroborar a linha e acção política do PCP. E, no espaço colonial português, cedo se manifestaram sinais de mudança, na falsa quietude da «paz salazarista» que o regime fascista procurava inculcar na consciência colectiva. Tornando-se o caso da Índia, uma questão central do colonialismo português na década de 50, desde a violenta rusga ao bairro dos pescadores de Mormugão na noite de Natal de 1950, até à invasão e integração dos territórios de Goa, Damão e Diu na República da Índia, em 18 de Dezembro de 1961.

Em vão, os comunistas portugueses fizeram sucessivos apelos para que o caso de Goa fosse resolvido, pacificamente, por meio da negociação e, cônscios de que a luta armada de libertação nacional dos povos africanos submetidos ao colonialismo português se prefigurava no horizonte, em Setembro de 1957, aprovaram a declaração seguinte:
«O V Congresso do PCP considera que estão hoje criadas as condições necessárias para que os povos das colónias de África dominados por Portugal conquistem a sua liberdade e independência, independentemente das modificações que se possam operar na situação política de Portugal.
O Congresso considera que a ajuda que o Partido e o povo português prestarem ao movimento libertador dos povos coloniais traduzir-se-á objectivamente numa ajuda à luta da classe operária e ao povo de Portugal pela sua própria libertação.»

Mas, o regime mantinha-se indiferente às profundas transformações que se operavam no Mundo. Apenas, numa mera operação de cosmética (1951), introduziu uma emenda à Constituição de 1933, onde a denominação «províncias ultramarinas» substituiu a de «colónias», e prosseguiu: silenciando com a chibata e valas comuns os protestos da população de São Tomé e Princípe (1953); ignorando o significado da Conferência de Bandung (1955); persistindo na repressão colonial, prendendo e deportando 49 timorenses para Angola; massacrando a tiro 26 estivadores grevistas do porto do Pidjiguiti, em Bissau; encarcerando 50 patriotas angolanos (1959); e metralhando o protesto das massas populares do Icolo e Bengo, em Angola, ou de Mueda, em Moçambique (1960).

Contra este quadro de bestialidade repressiva do colonialismo, o PCP foi a única voz que se fez ouvir, num comunicado da Comissão Política, em Novembro de 1960, que salientava a inevitabilidade histórica da abolição a curto prazo do regime colonial, e denunciava a tragédia iminente: «O Partido Comunista Português alerta o povo português contra os perigos duma guerra colonial, que o governo de Salazar prepara febrilmente, no único interesse dos grandes colonialistas e chama o povo português, em especial a juventude e as forças democráticas à luta contra a mobilização encapotada, pelo regresso das tropas que se encontram nas colónias e contra todos os preparativos de guerras coloniais» .

Quando, em 1961, a guerra de libertação nacional eclodiu, foi de novo a «gente meúda» arrebanhada pela mobilização militar que, em sucessivas vagas expedicionárias rumou à África, para defender os interesses do imperialismo monopolista, e sufocar pelas armas o grito de independência dos povos colonizados.

Nos anos que se seguiram, o PCP liderou de forma inquestionável, o protesto do movimento popular de massas contra a guerra colonial. A sua imprensa clandestina denunciou as atrocidades de que eram alvo os povos de Angola, da Guiné e Moçambique; contrariou as campanhas de desinformação e a manipulação das consciências orquestradas pelo regime fascista; assegurou a fuga da cadeia e o regresso à África de Agostinho Neto; possibilitou aos dirigentes dos movimentos de libertação a difusão de mensagens ao povo português, em entrevistas realizadas e transmitidas pela Rádio Portugal Livre e, já nos anos 70, as sabotagens da ARA desferiram rudes golpes na logística e no equipamento militar.

A solidariedade internacionalista do PCP objectivava-se na prática, e o Programa para a «revolução democrática e nacional» , aprovado no VI Congresso (1965), já integrara entre os oito objectivos fundamentais: «Reconhecer e assegurar aos povos das colónias portuguesas o direito à imediata independência».

Quando a descolonização foi anunciada como um dos objectivos do Programa do MFA, no 25 de Abril de 1974, Portugal assumiu a lógica da História. A derrocada do regime fascista consumara-se e com ele extinguia-se o colonialismo português.

Não foi o acaso que determinou a presença oficial do PCP como única formação política portuguesa presente em todas as cerimónias de reconhecimento ou proclamação da independência e soberania dos novos Estados africanos.

Contudo, o ciclo do colonialismo português não fora encerrado. A trama imperialista iria retardar durante longos anos a libertação do povo de Timor-Leste e, enquanto algumas destacadas figuras políticas nacionais afirmavam em 1974: “Timor é uma ilha indonésia que tem muito pouco a ver com Portugal” ou “a independência total é de um irrealismo atroz” , em 11 de Dezembro de 1975 o “Avante!” denunciava a agressão e ingerência da Indonésia: «O nosso Partido, a classe operária e todos os trabalhadores portugueses exigem que sejam respeitados os princípios de autodeterminação e independência que devem presidir à descolonização» .

Passaram-se vinte e quatro anos de apoio activo e solidário dos comunistas portugueses à luta de resistência do povo timorense, até este ser ouvido na escolha do seu caminho, a Independência!

Firme nos princípios e coerente nas acções, o PCP cumpriu o objectivo enunciado há 81 anos:

«emancipação completa dos povos indígenas das colónias»Adenda: espero que este artigo de J.M. Costa Feijão faça bom proveito ao embaixador Seixas da Costa que, no seu blogue, resolveu escrever isto :   «A legitimidade da “posse” colonial só começou a ser posta em causa, em Portugal, pelo PCP. Honra lhe seja! Fê-lo, naturalmente, porque a opinião de quem o guiava (leia-se Moscovo) assim aconselhava.e, Moscovo) tinha entretanto mudado