Ocorrendo apenas quatro meses após os acontecimentos do 25 de Novembro de 1975, a aprovação da Constituição
representou também um inestimável factor de estabilização da situação política e da vida democrática do país, assim contrariando as forças e interesses que acalentavam o desejo de levar mais longe uma dinâmica revanchista e a esperança de que umasubstituição do General Costa Gomes na Presidênciada República permitisse fazer retroceder e anular o curso progressista imprimido ao processo de elaboração da Constituição.
Mas a principal grandeza e importância da Constituição aprovada há 30 anos está no facto, carregado de significado e consequências, de com ela o país ter ficado dotado de uma Lei Fundamental que, embora com base num compromisso multipartidário, incorporou e consagrou, de forma clara e indiscutível, a ruptura revolucionária com a ditadura fascista e o vasto e rico património de valores,objectivos,transformações,conquistas e mudanças trazidas à e asociedade portuguesa pela revolução . Comrojmarcanteinda mais evident eaodiidem Constituiçãoocrática seá he,ststntiva natureza e este conteúdo da de 1976 não tiveram origem nem na mera relação de forças naAssembleia Constituinte nem no exclusivo mérito dos deputados constituintes. Antes só podem ser explicados pelos avanços e conquistas obtidos, vezes antes da sua consagração legal, nos anos de 1974 e 1975 através da luta dos trabalhadores e de outras camadas e grupos sociais e da aliança Povo-MFA, bem como pela existência à época de um muito profundo enraizamento social dos ideais e valores da revolução de Abril que condicionou em grande medida diversas forças políticas obrigando-as a dissimular transitoriamente muitos dos seus reais objectivos e propósitos.
E é também por isso que se pode dizer, com inteiro rigor
e cristalina verdade, que a Constituição da República aprovada em 1976 constitui ela própria uma fulcral conquista do 25 de Abril e representa, na história nacional, um indelével momento de pujante afirmação das melhores esperanças e aspirações e mais generosos sonhos do povo português.
Sete-revisões-sete
Ao longo dos últimos 30 anos, com maior ou menor intensidade, e exactamente por ser «filha da revolução de Abril» e não por estar em «oposição à revolução» como várias forças políticas sustentaram, a Constituição da
República não foi apenas motivo de luta política ou de debate ideológico mas também e sobretudo um alvo privilegiado da ofensiva das forças de direita e do grande
capital, quase sempre com uma significativa cumplicidade do PS.
Se outros elementos não existissem, bastaria referir o facto de, desde a sua aprovação, a Constituição de 1976 já ter sido sujeita a sete processos de revisão (o que coloca certamente Portugal, a nível europeu e mundial, como um dos países onde mais repetidamente se altera a Lei Fundamental) para se perceber que não terminou em 1976 nemestá ainda entre as forças e interesses que não se reconhecem nosvalores, na substância concreta e na arquitectura constitucional originada na revolução democráticae as forças, como o PCP, que são fiéis àquele património e nele vêem um importante instrumento e uma decisiva referência para a construção de umfuturo diferente e melhor.
Na verdade, as sucessivas revisões da Constituição
não são explicáveis por qualquer obsessão perfeccionista ou volúpia actualizadora mas pelo propósito comum à direita e ao PS de, passo a passo, ir mutilando o texto original da Constituição, retirando protecção constitucional a algumas importantes conquistas de Abril,reabilitando retroactivamente as políticas que, em aberta divergência com a Constituição, realizaram e realizam nos governos, abrindo as portas para mais graves avanços«da política de direita.
Na
verdade, o que verdadeiramente marca as sucessivas revisões da
Constituição (umas ordinárias, outras
extraordinárias) não são melhoramentos pontuais
positivos (que é sempre possível fazer e para os quais
o PCP, uma vez desencadeados os processos de revisão, muitas
vezes qualificadamente contribuiu) mas sim importantes alterações
de fundo em consonância com os interesses e objectivos da
política de direita. Assim, é o caso da revisão
de 1982 que procedeu à reconfiguração dos órgãos
de poder ditada pelo propósito do PS, do PSD e do CDS de
extinguir o Conselho da Revolução e a intervenção
institucionalizada do MFA na vida política. É o caso da
revisão de 1989 cujo objectivo fundamental foi o de eliminar a
protecção constitucional da Reforma Agrária e
das nacionalizações (abrindo caminho para o nefasto
processo de privatizações que o país tem
conhecido e sofrido). É o caso da revisão de 1992 que
visou proteger e autorizar as graves mutilações da
soberania nacional induzidas pela vinculação ao Tratado
de Maastricht. É o caso da revisão de 1997 que saldou
pela consagração da exigência de um referendo
obrigatório sobre a institucionalização das
regiões administrativas (que entretanto continuam inscritas na
Constituição como uma realidade integrante do poder
local) e pela perversa abertura dada a negativas alterações
nas leis eleitorais, quer para as autarquias locais quer para a
Assembleia da República. É o caso da revisão de
2001 destinada a permitir a adesão ao Tribunal Penal
Internacional e a autorizar as buscas policiais nocturnas. É o
caso da revisão de 2004 que, com o proselitismo próprio
dos subservientes, cuidou de submeter antecipadamente a nossa
Constituição a uma «Constituição
europeia» que se não está morta está mal
enterrada. E, por fim, apesar de tudo o menos grave, e o caso da
revisão de 2005 em que, após piruetas e trapalhadas sem
fim a propósito do regime do referendo sobre temas europeus,
PS e PSD acabaram por consagrar uma solução dúbia
e insatisfatória, recusando pela quarta vez a proposta do PCP
de consagrar plenamente a possibilidade de referendos sobre tratados
nesse âmbito.
Falsidades,
argumentos de conveniência e outros truques
A
campanha política e ideológica que há trinta
anos é movida contra a Constituição não
se deteve nem amainou significativamente com a frenética
sucessão de revisões e tem-se servido invariavelmente
de um vasto conjunto de falsidades, argumentos de pura conveniência
e outros truques.
Nesse
turvo conjunto, por vezes nem há qualquer coerência dado
que as forças de direita (e também o PS) acusam o PCP
de, em 1975-76, ser contrário à elaboração
e entrada em vigor da Constituição mas, ao mesmo tempo,
são elas que mais atacam o conteúdo da Lei Fundamental
do país enquanto o PCP é o seu mais firme defensor.
Em
termos históricos, esta acusação feita ao PCP
serve-se sobretudo daquela que é, sem dúvida, a maior
falsificação política posta a circular depois do
25 de Abril de 1974 e à qual bem se pode aplicar a máxima
de Goebbels de que uma mentira mil vezes repetida acaba por se tornar
verdade.
Referimo-nos
concretamente ao que quase toda a gente tranquilamente chama de
«cerco da Constituinte» – expressão que,
combinada com o sistemático recurso às imagens
televisivas da concentração de trabalhadores da
construção civil em frente ao Palácio de S.
Bento em 12 e 13 de Novembro de 1975, pretende atestar ou certificar
que, de facto, terá havido um grave conflito e antagonismo
entre, de um lado, o movimento popular, os trabalhadores e o PCP e,
do outro, a elaboração da Constituição em
que PS, PSD e CDS supostamente estariam firmemente empenhados.
Nem
os anos que passaram, nem o pessimismo pessoal sobre as hipóteses de se ganhar esta batalha de esclarecimento e rectificação, nem o facto de esta monumental falsificação já
ter assumido ares de «verdade oficial», designadamente
com a sua lamentável inclusão numa edição de luxo da Assembleia da República em que se descreve história do Parlamento português, nos podem ou devem levar a desistir de combater este deliberado atropelo à verdade e grave entorse à história.
Dirigentes e responsáveis do PS, do PSD e do CDS, e legiões de jornalistas e comentadores já repetiram milhares de vezes a expressão «cerco da Constituinte».
Mas é exactamente no que sempre omitiram e omitem e no que não contaram e não contam que está a verdade dos factos e a verdade do que realmente aconteceu.
Porque todos sempre omitem que a manifestação-concentração dos trabalhadores da construção civil só se
realizou em frente ao Palácio de S. Bento porque o Ministro do Trabalho, desrespeitando compromissos assumidos, encerrou à última hora as instalações do Ministério
na Praça de Londres.Porque todos sempre omitem que não foi a Assembleia Constituinte que foi «cercada» mas sim o Palácio de S. Bento onde aquela funcionava mas onde funcionava também o VI Governo Provisório e o Primeiro-Ministro Pinheiro de Azevedo, as únicas entidades a quem os trabalhadores dirigiram as suas reivindicações sócio-laborais.
Porque todos sempre omitem que, sendo verdade que, num quadro de grande exasperação e radicalismo, os deputados à
Constituinte, erradamente, também foram impedidos de sair, a maior e mais decisiva verdade é que aquela imensa concentração de trabalhadores não apresentou quaisquer reivindicações à Assembleia Constituinte nem formulou quaisquer exigências relativamente à elaboração da Constituição.
Porque todos sempre omitem que por mais que se dessem ao trabalho ampliar as fotografias e as imagens televisivas dessa concentração, jamais encontrariam nas respectivas faixas e palavras de ordem qualquer referência à Assembleia Constituinte e à elaboração da Constituição.
De um outro ângulo, merecem também referência as constantes linhas de ataque à Constituição seja com pretexto na sua extensão (296 artigos), seja em desacordo
com as suas fortes componentes programáticas, tudo convenientemente embrulhado em sofismas como a da «neutralização ideológica» da Constituição e da vantagem
de, para o «Estado mínimo» que alguns desejam, haver também uma «Constituição mínima».E é assim que, ano após ano se vai fazendo toda uma
intensa doutrinação sem que os doutrinadores alguma vez
tenham respondido à sensata objecção de que uma
«Constituição mínima» significaria necessariamente criar uma maior latitude e margem de arbítrio para os órgãos de soberania, alguma vez tenham sacudido a crítica de que eliminar o carácter ideológico e programático de certas normas da Constituição é viabilizar e consagrar outra ideologia e outro programa, alguma vez tenham explicado porque é que os incomoda tanto a extensão da Constituição portuguesa e não os incomodou nada a extensão da «Constituição europeia» que continha 456 artigos, fora os anexos, e que fervorosamente apoiaram.
Defesa~da Constituição –
uma luta que tem de continuar
Pode haver democratas que hoje tendam a desvalorizar a luta em defesa da Constituição e pelo seu respeito e cumprimento devido à evidência de que facto de termos tido – e ainda hoje assim ser – uma das Constituições mais avançadas e progressistas do mundo não poupou o povo e o país – e, em boa verdade, não estava ao seu alcance garanti-lo – aos continuados efeitos da política de direita praticada porsucessivos governos com todo o seu cortejo de desilusões, injustiças, malfeitorias e retrocessos.
Mas,
a este respeito, é necessário lembrar duas coisas
essenciais: a primeira é que é impossível fazer
a demonstração de que, sem ela, as coisas teriam
corrido melhor, sendo avisado admitir que a ofensiva antidemocrática
e a política contrária aos valores e objectivos
constitucionais teriam chegado ainda mais longe e mais fundo sem esta
Constituição; a segunda é que por alguma razão
os sectores políticos que são porta-vozes e
representantes do grande capital e do neoliberalismo continuam a
ambicionar proceder a uma grande e drástica «limpeza»
na Constituição.
E
não é prudente nem vantajoso ignorar que a eleição
de Cavaco Silva para Presidente da República introduz, ao
menos de forma reflexa, no quadro político nacional alterações
que, entre outros eixos de pressão para o agravamento da
política de direita, não deixarão de favorecer
maiores pressões para futuras revisões constitucionais
que desfigurem ainda mais, em múltiplas vertentes, o regime
democrático consagrado na Constituição.
Escrevendo
isto não estamos obviamente a prever ou vaticinar que, em
Belém, Cavaco Silva vai desencadear iniciativas ou tomar
posições frontalmente inconstitucionais, estamos sim a
chamar a atenção para que a eleição de
Cavaco Silva é um inegável factor de estímulo
para as forças económicas e interesses de classe que
apoiaram a sua candidatura e que essas nunca fizeram as pazes com a
Constituição e, mais cedo do que tarde, trarão
para a cena política toda as opções ideológicas
e todos os projectos que Cavaco Silva zelosamente escondeu e
dissimulou durante a campanha eleitoral.
E
não é necessário ter tirado qualquer curso
superior de bruxaria para saber que, de há muito, o grande
capital e as forças de direita (e sectores que pesam no PS
dirigido por José Sócrates) consideram que a
Constituição é ainda um sério obstáculo
à concretização dos seus projectos em matéria
de direitos dos trabalhadores, de privatização de
serviços públicos e de desmantelamento dos sistemas
públicos de saúde, segurança social e ensino e
talvez mesmo de reconfiguração do sistema político
e dos poderes dos órgãos de soberania.
O
PCP e os comunistas portugueses, que têm legítimo
orgulho na contribuição que deram para a elaboração
da Constituição aprovada em 1976 e para a fundação
do regime democrático, continuarão a inscrever na sua
agenda de luta e nos seus compromissos com o povo português a
defesa activa da Constituição da República,
texto que continua a ser mil vezes mais moderno do que o discurso e
as orientações dominantes na vida política
nacional e que, por isso mesmo, tem futuro e é essencial para
a construção de um Portugal com futuro.